Quando as luzes se apagam
- Leiliane Germano
- 8 de dez. de 2015
- 3 min de leitura
Juiz de Fora já foi iluminada por mais de vinte cinemas. A velha Halfeld foi palco de grandes sessões onde jovens casais, famílias e viajantes se encontravam em busca da sétima arte. Após décadas, as cortinas se fecharam e os espaços se misturam à decoração local. Registros latentes de uma época. Hoje, o último cinema de rua da cidade luta por algo que nem mesmo ele sabe até quando existirá: esperança.

Trinta de março de 1929. Ainda lembro-me daquele dia especial, quando vi minha tela iluminar-se com as cenas de Esposa Alheia. O dia foi tão especial a ponto de minhas 2.150 cadeiras ficarem repletas de olhares curiosos. Até mesmo o presidente do estado de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, veio me prestigiar. Aqueles foram dias felizes. Hoje vocês passam pela Rua Halfeld como se eu fosse apenas um enfeite decorando o calçadão. Já não exibo mais grandes clássicos, muito menos te faço parar um pouquinho que seja para conversarmos. Vocês mal sabem que meu nome se escreve com TH. Descendentes do público que um dia me amou, onde estão vocês?

Sim sou meio acanhado, meio escondido. Você passa por mim todos os dias, seja correndo para trabalhar ou apenas olhando minhas vitrines. Não lhe culpo por não me chamar pelo meu nome, afinal me rebatizaram sem minha autorização. Lá no fim dos anos vinte, vi minhas luzes se acenderem e, depois do abrir das cortinas, exibi A Dama das Camélias. Ah, dias de glória. Já lhe contei que fui porta-voz de notícias? Durante a segunda grande guerra, levei ao público os cinejornais. Agora sou um aglomerado de lojas, vitrines e pessoas. E enquanto insistem em chamar-me de Constança, ainda cordialmente me apresento. Prazer me chamo Glória.

Minhas paredes têm histórias para contar. Não me orgulho de dizer que o que foi gasto em mim veio de um governo que nem eu nem o mundo fazemos questão de lembrar. Mussolini não poupou em minha obra deixando aqui sua marca fascista. Não, não passe aqui nessa pressa toda com seus carros impacientes. Não finja que as memórias de uma época se apagaram diante de minhas paredes brancas. A guerra acabou, cinema já não sou mais, mas os livros didáticos ainda gritam que guerra já não queremos mais.

Ei, você, que mal me vê aqui no meio da Avenida Rio Branco. Para você me tornei apenas um prédio, seu plano de fundo dos dias de trabalho. Sinto-me tão imperceptível, abandonado. Esquecido a ponto das flores notarem mais minha existência do que o próprio florista. Por que você não olha para mim? Pior do que a falta de cuidados, só mesmo o esquecimento. Essas paredes findadas há mais de 50 anos só criam o mínimo de vida quando suas cores bordam aquele que um dia recebeu fileiras e mais fileiras de apaixonados por cinema. Obrigado pelo doce perfume e pelo acariciar das pétalas. Das lembranças restaram saudade. Nem sei mais se ainda me chamo Excelsior.

Você, que caminha pela a velha e encantadora Praça da Estação, mal sabe o que já se passou por aqui. Ali na parte baixa da Rua Halfeld, jovens casais de mãos dadas flertavam em minhas poltronas. Quantas vezes fui palco de primeiros beijos. Ali viajantes curiosos tiravam um tempinho de seu passeio e abraçados a um saco de pipoca prestigiavam minhas sessões. Ao chegar do trem, logo se ouvia um apressar de passos de quem vinha assistir a mais um filme no Cine São Luiz. Depois de uns anos, fiquei menos acanhado e passei a exibir longas um pouquinho apimentados. Me julgue se quiser. Só não se sente aqui por favor, na minha frente, e finja que sou invisível à você.

Ah que saudades sinto daquelas crianças correndo pelo meu saguão, loucas pelas balas de minha bomboniére e encantadas com meus luxuosos lustres. Foi no dia 19 de novembro de 1948 quando as cortinas se abriram e vi Rita Hayworth brilhar em Quando os Deus Amam. Sempre muito requintado, em belas poltronas proporcionei grandes emoções. Tempo frio e ingrato. Hoje me encontro aqui, deixado na esquina da Batista com a Halfeld. Não existem mais crianças, muito menos famílias da alta sociedade. Apenas o cheiro de pipoca da carrocinha e os velhos amigos trocando histórias em minhas escadas. Dos grandes públicos, me alegro com o Festival Primeiro Plano, das grandes palmas, ouço apenas a lembrança. Meu futuro é incerto e minha sorte foi lançada. Do que me restou daquele esplendor? A esperança de sobreviver ao esquecimento.
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