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Tecer o plano

  • Uma pá de histórias
  • 10 de dez. de 2015
  • 14 min de leitura

Capítulo 2

Nas histórias, após a introdução vem o conflito. Ele é necessário para que as narrativas amadureçam, fiquem mais interessantes e tenham uma conclusão objetiva. Guardadas as proporções, a vida não é muito diferente — a divergência está na quantidade e na complexidade de tramas. Elas se enrolam, mas, quanto mais intrincadas, mais madura a pessoa que as vive tende a ser. É uma lição que vocês humanos começam a aprender na infância e, quando o tempo age, conseguem ver a importância dela. É o caso de Lucas. Venham ver o desenrolar dessa história.

* * *

Um dia perguntei à mamãe por que meu pai havia ido embora. Não conseguia entender por que ele estava demorando tanto para voltar de viagem. Eu só sabia que ele estava em algum lugar distante. Não havia outro motivo para levar todas as suas coisas e também não telefonar, e olha que aos sábados a ligação tinha desconto.

Nos primeiros dias na nova casa, eu tive medo de dormir sozinho. Depois consegui me adaptar ao novo quarto, mas com a luz do corredor acesa. Sempre ouvia ruídos no quarto, mas minha mãe dizia que era bobeira da minha cabeça. Até que um dia ela me deu um diário e pediu para que escrevesse todos os meus temores e problemas. Aquele era o meu único amigo.

Ela já estava adaptada. Parecia que sempre tinha morado ali e tentava me convencer a me sentir assim. Mas, à medida que o tempo passava, mais irritado eu ficava. A nova escola era chata. A quadra era pequena e ninguém me queria no time de futebol. Meus brinquedos me olhavam no canto do quarto, mas eu não sentia vontade de brincar. Até o ursinho, fiel companheiro, estava coberto de poeira no alto do armário.

Passamos a brigar com frequência até que eu descobri uma nova palavra: castigo. Pelo menos agora eu tinha com quem conversar. As paredes eram ótimas ouvintes. Quanto mais o clima pesava na casa, mais eu desenhava aquilo que me irritava no diário. Com isso, passei a escondê-lo debaixo da cama para que ninguém soubesse o que me amedrontava. Esconderijo discreto, mas perigoso.

* * *

A adaptação é uma característica dos seres vivos. De uma maneira mais subjetiva do que disse Darwin, é importante desembolar certos fios para seguir adiante, para que novas e, via de regra, cada vez mais complicadas linhas se façam. Você já deve ter tido desilusões em todas as etapas da vida, com pessoas, com acontecimentos, com você mesmo. Mas sentimentos vêm e passam, sem nunca deixar de existir. Resta-me apenas observar.

* * *

“Eis então que chega o momento

do sentimento temido

Solidão, palavra ingrata

que já vem no aumentativo”

Encontrei-me com ela que me aguardava à espreita. A temida solidão. De pouso em pouso, não a vi chegar. Mas, quando menos esperava, ela veio e trouxe na bagagem um sentimento indescritível naquele momento. Algo muito potencializado que jamais havia sentido antes. Ora, nunca estive só. Meu coração acostumado a viver fora do corpo estava agora apertadinho dentro de mim. Comecei a conviver com a palavra ingrata, que ocupava todo o espaço que antes pertencia ao verbo amar.

Quando se perde um amor, tem de se lidar com lembranças. E lembrança é um laço que não desata. Havia dias em que ele era bem pequeno e inofensivo, mas, em outros, era tão grande que me prendia até o pescoço.

Acho que foi uma fossa acumulada. Como o mesmo peito, que aprendeu a amar, consegue suportar tanta dor? Questionando isso, percebi que, mesmo sozinho, não estava só. O amor é universal! E a perda dele também. Peguei-me pertencente a um grupo de pessoas: as que amaram e se deixaram amar. Todo mundo que amou um dia, inevitavelmente, passa pelos mesmos sentimentos.

Decidi que, mesmo cercado por saudade, tiraria algo produtivo da dor. Artista tem dessas coisas. Encasquetei com a ideia e, por dois anos, pensei em um roteiro de filme. Um palhaço, cujo nome é Fossa, que se apaixona por um balão, mas o perde tempos depois e se vê obrigado a lidar com o mesmo carrossel de sentimentos em que eu me encontrava. Escolhi o balão por não representar nada além do amor. O amor é assim, simbólico e amplo.

(Foto: Caroline Marino)

“Senhoras e senhores, peço muito sua atenção, pois o rapaz passa por uma difícil situação. Todo aquele blá blá blá de coração partido e que não entende quem nunca foi ferido. Sair dessa ele não sabe, solução não há quem possa. Como exemplo vou chamar o palhaço de nome Fossa!”

Pensei em cada imagem, cada metáfora e cada prosa da narrativa para compor o roteiro. Pensei em cada expressão e em cada sentimento que pertenciam ao Fossa, mas que, ao mesmo tempo, pertencia a mim. Texto pronto. Faltava-me o mais difícil. Na época, não conhecia ninguém para me ajudar a colocar todas as ideias em prática. Ainda em meio àquele sentimento incurável, decidi procurar ajuda. Mas o destino, malandro que é, não facilitou as coisas. Meu carro foi roubado. Não bastasse a perda do carro, levaram-no justo quando o roteiro estava dentro dele. Lá se foram meses de trabalho.

Certo de que iria tirar do campo das ideias e colocar tudo isso em prática, reescrevi o roteiro. Desta vez, me desafiei. Lembrei-me do concurso de trovas que ganhei aos 7 anos. E em três dias meu roteiro estava pronto novamente. Escrevi um texto todinho em trova rimada.

A animação aumentou e a vontade de encontrar parceiros para embarcar nessa aventura não cabia dentro de mim. Certo dia, uma amiga, Letícia, marcou uma reunião na sua casa com pessoas que poderiam me ajudar. Além dela e mais um amigo, o Betinho, não conhecia ninguém presente ali. Li meu texto e não sabia o que esperar. Ao terminar, a boa notícia veio em seguida! Havia encontrado o futuro diretor do filme, Samuel Fortunato, e Gustavo Xagusta, que faria a trilha sonora original.

Naquela noite, “Fossa” nasceu.

* * *

É assim com as milhares de vidas que acompanho diariamente. Uns precisam lutar com todas as forças para concretizar seus projetos; outros precisam de uma epifania, um lampejo. No entanto, há sempre um clímax, um momento em que o jogo vira, a sorte muda e os propósitos se renovam. E, por mais que a estrutura seja a mesma, cada narrativa é instigante à sua maneira, no seu ritmo. É só esperar para que esses momentos cheguem, trazidos quiçá por uma história com a qual nos esbarramos por aí.

* * *

Naquele tempo, o acesso a filmes era muito restrito. Sobretudo aos cinemas. As produções pornográficas estavam tomando conta dos espaços. “O que me salvou foi o vídeo cassete. Meus pais não gostavam de cinema, então, eu tive que correr atrás.”

Certo dia, Nilson Alvarenga entrou em uma locadora de vídeo e correu os olhos pelas prateleiras. Estacionou na seção de terror e uma capa lhe chamou a atenção. O nome do diretor era um tanto estranho, Ingmar Bergman, cineasta sueco (1918–2007), mas o título forte soava como algo realmente horripilante “O ovo da serpente”. Anos depois, ele ainda se surpreende com o fato de encontrá-lo naquela sessão. “Não se trata de um filme propriamente de terror, é mais psicológico.”

Como a maioria, também acompanhava a programação da TV. Certa madrugada, ele e seu irmão começaram a assistir ao filme "2001 Uma Odisséia no Espaço", de Stanley Kubrick. O irmão dormiu nos dez primeiros minutos. Nilson continuou assistindo mesmo sem entender o significava tudo aquilo. Após essa rápida incursão por alguns clássicos até então desconhecidos, o jovem ficou inquieto diante das cenas que presenciava. Era um sintoma quase imperceptível a lhe acossar os calcanhares. A casca começara a ser rompida. O que sairia de seu interior mudaria sua vida para sempre.

* * *

O terror é um instinto natural, desperta reações químicas que fazem com que o corpo fique alerta, com mais capacidade de reação. Ainda que esteja protegido pela ficção, o espectador é enganado pela imersão. E o mundo ajuda, desempenhando o papel de despertar o horror com seus noticiários, deixando latente o medo das pessoas. Para os cineastas, fica a complexa tarefa de transformar sensações em imagens, fazer com que se acredite nos frutos de suas mentes.

* * *

O Senhor está vendo você desrespeitar o evangelho. Honrar pai e mãe.

Ela fez questão de dar ênfase às palavras pronunciadas lentamente.

Você lembra disso? Você sabe pra onde vão os meninos maus? Os meninos pecadores? Você sabe, não sabe? Imprestável!

Ela o soltou e o empurrou de leve, afastou-se lentamente. Tudo o que o homem pôde fazer foi continuar de cabeça baixa e ouvir cada palavra sussurrada diretamente nos seus ouvidos. Ele cuspiu o restante da carne que jazia em sua boca e transformou toda a raiva que gritava dentro de si em um brando suspiro.

Os dias que se seguiram foram pintados com as mesmas cores com as quais ele estava acostumado: claras logo pela manhã, no momento em que ele saía para o seu martírio, carregando a cruz repleta de algodões-doces; alaranjadas, escurecidas, quando ele voltava ao fim da tarde, com os ouvidos reforçados para escutar as longas acusações da mãe. Apenas em uma noite as luzes foram vermelhas e luxuriantes. Ele já estava habituado com a densa coloração e o forró brega que tocava naquele ambiente, o prostíbulo onde sua amada trabalhava. As horas em que passara lá, no entanto, não decorreram da maneira como costumavam. Houve xingamentos, insultos, até que o ciúme que o homem acumulava dentro de si o sufocou e o cegou em ações de violência. Ele a havia machucado, mas ela estivera nos braços de sabe-se lá quantos homens em troca de dinheiro e ainda estava grávida de um desconhecido, um anônimo qualquer. Impor sua força contra a garota lhe dera a satisfação que se formou no sorriso em seus lábios no momento em que ele a deixou, sozinha, naquela cama imunda, maculada, em que ela insistia em deitar e ficar contra a vontade dele.

E tantos outros dias se passaram naquele mesmo ritmo lento do meio rural, do mugir dos bois e das vacas, do campo e da estrada terrosa por onde ele caminhava com tanta frequência, as rezas da mãe beata e as velas que queimavam no clamor silencioso de uma fé inabalável. No entanto, aquela noite que aparentava transcorrer como todos os outros episódios de sua vida, tivera um teor diferente. Ele estava sentado de frente para a mãe na mesa da simples cozinha e foi recebido por palavras menos agressivas e por um sorriso que espantava, por alguns instantes, a agressiva seriedade tão constante na face da velha mulher.

Hoje é uma noite especial. A janta tá reforçada Ela ergueu os braços, indicando a mesa. É o momento de reunir forças, meu filho. É preciso ser forte para ouvir e fazer o que o nosso Senhor nos fala.

(Foto: Leticia Abdalla)

O homem então fez um gesto, envergando-se para frente e erguendo a mão.

Mãe...

Não me interrompa! disse ela, erguendo o dedo e fazendo com que o filho se retraísse em sua cadeira. Me escuta! Você acha que eu não sei do seu bezerrinho? Você pensa que eu não sei da Maria Madalena que você anda vendo?

Olha aqui, mãe...

Me escuta e não me interrompa! Me respeita! gritou ela. Você vai me trazer esse bezerro. Agora fica bem quieto e me acompanha na reza!

A velha mulher beijou o terço que carregava nas mãos e fez um sinal da cruz. A cada conta que ela passava em seus dedos, uma oração. Ao terminar, ela pegou o garfo e a faca e cortou a carne em seu prato. O gesto despertou no homem uma nova alucinação que o assombrava como um fantasma em sua mente. A voz da mãe ecoava, dizia palavras que ele conseguia ouvir com nitidez espantosa. “E lhes farei comer a carne de seus filhos e a carne de suas filhas. E comerás, cada um, a carne de seu amigo. No cerco e no aperto, em que os apertarão seus inimigos, os que buscam a vida deles”. Vísceras e miolos estavam espalhados por toda parte naquele ambiente vermelho e uma criatura com corpo humano e uma máscara feita com os restos de carne de porco banhada em sangue. Segurava uma faca e cortava os órgãos, grunhia e o observava através de dois furos, onde seus olhos eram apenas sombrios abismos.

* * *

Sangue, tripas, carnes. Nada que a Terra não há de comer, mas é uma bagunça para a velocidade do tempo dos homens. Um sem-fim de tentativas em nome da imaginação. Decerto um investimento que vale a pena, pois a ficção é um ótimo combustível para a criatividade. E a repetição, uma ótima forma de ser bem sucedido.

* * *

Corta! Vamos tentar de novo?

Não sei quantas vezes ouvimos isso durante os vários dias de gravação do mês de dezembro. As horas de trabalho que seriam resumidas em apenas 19 minutos de curta estendiam-se ao longo de todo o dia, acompanhando a protagonista Lara, vivida por Marcinha Falabella, em vários ambientes diferentes.

Quando chegamos ao apartamento da Rio Branco, set do primeiro dia de filmagens, já estava no meio da tarde. Enquanto esperávamos o elevador, a euforia começava a dar lugar à ansiedade. Lílian e Carol, produtoras do curta, receberam-nos, apresentando a equipe e diminuindo o desconforto que sentíamos por sermos os únicos desconhecidos no projeto.

Começamos a tirar as fotos dos bastidores enquanto acompanhávamos ensaios com os figurantes, análises de enquadramento, composições de cena e ajustes elétricos. Foram algumas horas para criar a atmosfera desejada. As filmagens mesmo só começaram no início da noite, prolongando-se durante parte da madrugada.

Apesar de suas especialidades, todos ajudavam como podiam em qualquer área, inclusive nós. Além de fotografarmos os bastidores, auxiliamos no cenário, na compra de itens, desenhamos e escrevemos textos que serviriam para a cena final do curta o planejamento tinha que ser adiantado, já que o tempo de gravação era muito curto, apenas um mês, e o cronograma precisava ser cumprido.

Além do cuidado com cada detalhe, algo que chamou nossa atenção nesse primeiro dia foi a preparação da Marcinha para o papel. Ver suas atuações sempre é um espetáculo à parte, mas poder acompanhar todo o processo de criação de personagem foi inspirador. Ela sempre poderia ser encontrada nos cantos, isolada, um pouco alheia do mundo, concentrando-se em ser mais Lara do que ela mesma.

(Foto: Laura Santos)

* * *

A construção do personagem precede o trabalho do ator. Ela é idealizada desde a direção, na escolha, por exemplo, da paleta de cores das roupas que serão usadas pelos personagens.

Para Márcia, esse planejamento acrescenta no resultado do filme. “Isso é legal porque dá harmonia estética para a obra.” Quando o diretor é também quem faz o roteiro, a construção fica ainda mais clara. Há, no entanto, detalhes que podem fugir do planejado.

No caso da personagem Lara, não havia como prever que a atriz teria medo do seu principal parceiro de gravação, por isso é importante que o elenco tenha acesso ao roteiro, para que não se envolva em um trabalho que não esteja a fim de fazer.

Muitas vezes ocorre de o ator ter sincronia com as ideias do diretor e do roteirista, mas Márcia deixa claro que é interessante que ele também acrescente características ao personagem e, para isso, é feita a preparação do elenco. No entanto, ela lembra que, apesar de toda programação, é inevitável que coisas inesperadas ocorram no dia da gravação.

“Por mais que você encontre com o diretor, com o elenco, faça um exercício de improvisação em cima do texto, no dia da filmagem é diferente. Nele, o diretor sempre altera muitas coisas e não nos resta tempo de ficar pensando o que é melhor ou não ser feito”, disse Márcia.

(Foto: Jéssyka Prata)

* * *

Há diferentes tipos de atores, mas de todos se exige esperteza. É difícil saber lidar com a plateia e suas interações, no caso do teatro; com ordens surpresa do diretor, dificuldades técnicas e extensos horários do cinema, com figurinos desconfortáveis e sentimentos que não são seus. Como ponto positivo, há o conhecimento para além de si. É uma profissão muitas vezes marginalizada, mas surpreendente e emocionante.

* * *

O primeiro convite foi o curta “Brasileiro que nem eu”, cujo texto foi entregue na hora da gravação. Sandra Emília considerou aquilo um absurdo. Como uma atriz recebe o texto sem ao menos ter a oportunidade de construir seu personagem? Naquele momento, ela só queria enfrentar o nervosismo de quem está começando. No entanto, ela detestou, achou tudo péssimo, afinal de contas, nunca havia feito nada tão rápido e sem aprofundamento. Naquela época, Sandra não contabilizava seus curtas, ela simplesmente os fazia, sem se preocupar com números. Esse frescor da novidade e o trabalho com jovens conquistaram Sandra, que viu aí a possibilidade de renovação e de se entregar de vez à sétima arte.

O risco calculado nem sempre gera medo, mas coragem para enfrentar dificuldades. Assim, Sandra sempre esteve disposta, nesses 45 anos de carreira, a enfrentar possíveis entraves para alguém tão perfeccionista, como a escassez de ensaios do cinema em relação ao teatro. A luz também era uma dificuldade para Sandra. Segundo ela, essa é uma das vilãs do set de filmagem. A atriz costuma dizer que no teatro o grande protagonista é o ator em cena; mas, no cinema, quem “dá as cartas” é o som e a luz. Sem esses recursos nada funciona, tudo está condicionado a eles, mais uma prova da sua capacidade de se reinventar e entender que, a partir daquele momento, era necessário dividir a cena com esses elementos necessários no cinema.

* * *

As novidades estão presentes em cada uma de minhas esquinas. Abraça-as quem ousa.

* * *

A maçaneta influi em nós um misto de sensações. O nojo coexiste com a excitação. Entramos na sala perdidos, deslocados no breu, sem entender que bastariam dois passos para imergir nela. Nem um corredor para nos preparar. Nem uma antessala para atiçar a antecipação. Na escuridão, o cheiro de eucalipto, de desinfetante, é a primeira coisa percebida. Nada dos aromas fétidos que esperávamos, mas um cheiro de limpeza pesada, asseio forçado higiene, no entanto, que não conseguiu, apesar do notável esforço, tirar as marcas nas paredes. Nossas lanternas, ao mesmo tempo, iluminavam os indícios de onde a porra um dia esteve e denunciavam nossos passos e o quão deslocados estávamos.

O espaço em que nos encontrávamos no momento era um convite ao voyeurismo. A um metro, uma parede com três aberturas na altura da cabeça nos separava da sala de exibição de filmes para o público hétero. Para homens héteros, na verdade. De lá, observávamos quem se masturbava em uma das poltronas, ou quem apenas assistia. O projetor no teto jogava imagens de sexo explícito, sem contexto, na parede. Não era um primor do cinema, mas ninguém estava ali pela sétima arte.

Durante nossas voltas pelo lugar, com olhares furtivos, sentados às vezes, em pé outras, mas sempre com um desconforto latente, vimos diversas pessoas passando por aquela sala. Só vimos homens naquele dia. Um idoso, sentado mais atrás do lado direito, masturbava-se com menos pudor, e, mesmo ele, colocava a mão esquerda sobre o membro para escondê-lo de “apreciadores” mais vorazes, e assim permaneceu, em sua insistente atividade, durante todas as horas que passamos lá. Ele não tinha um semblante de fragilidade, apesar dos cabelos brancos, diferente do outro senhor que sentou na mesma fileira, à esquerda. Mais franzino, mais velho talvez, ele engajou na mesma atividade que seu companheiro de sala, com a mesma determinação. Às vezes, soltava exclamações que eram quase sussurros, para ele mesmo ou para a tela, não pudemos definir: “putinha”. Aquilo provava que, apesar do nosso apego à qualidade técnica do que víamos projetado, o filme cumpria bem o papel.

(Laura Santos)

Mais à frente, do lado esquerdo, dois homens por volta dos seus vinte e muitos, trinta anos, um de regata e outro de meia manga assistiam ao filme sem se mover. Não conversavam, não se olhavam, não se masturbavam, nada. E se houve alguma atividade entre os dois, garanto que não foi falta de atenção que nos impediu de ver, mas uma discrição e controle motor invejáveis por parte deles. Quando o de camiseta saía da sala, o que acontecia com certa frequência, ele voltava logo em seguida para a sua posição cativa ao lado do possível amigo-parceiro-estranho. Pareciam todos estarem calmos, acostumados com as leis tácitas daquele lugar, mas, talvez devido à novidade que nossa presença impunha, quando olhavam para os lados, havia uma certa inquietação. Mesmo quando estávamos nas janelinhas e um homem parado no canto, em pé, nos encarava, o que víamos em seus olhos não era somente convite, uma cobiça direta, mas também dúvida, até mesmo receio.

O ingresso comprado dava direito à permanência, de 11h às 20h, no espaço das duas salas de exibição, no darkroom nos fundos do estabelecimento banheiros e em uma sala onde havia apenas uma mesa de jardim com quatro cadeiras. Com todas essas áreas, além dos corredores atrás das salas para os observadores, é natural que aquele também seja um ambiente de trânsito, como o homem que nos encarou e vários outros, bem familiarizados com a geografia do local usou. As pessoas vagam em busca de um novo prazer, novas pessoas e possibilidades. E nós não fizemos diferente.

* * *

A reportagem Tecer o Plano é uma história seriada. Ou melhor, várias histórias reunidas em quatro capítulos. E esse é o segundo.

O primeiro foi ao ar na segunda-feira (7) e você pode conferir o começo dessa história na sessão "Seriado".

Na próxima segunda (14) lançaremos o terceiro capítulo aqui no blogo do Uma pá. Aguarde!

 
 
 

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