Onde habitam os monstros?
- #façasuahistoria
- 14 de dez. de 2015
- 4 min de leitura
Se pudesse escrever de novo a sua história, o que você faria? Mudaria totalmente ou deixaria do jeito que está? O desafio que o Uma pá de histórias lançou foi justamente esse, criar uma história em que qualquer pessoa pudesse mudar o enredo como quisesse. O pontapé inicial do desafio foi um trecho do curta "Nham Nham", de Lucas de Barros. A partir daí, alguns seguidores da página puderam dar o rumo que quisessem à narrativa.
Boa leitura!

Mas que barulho chato é esse? Aqueles ruídos mais pareciam algum roedor. Receoso, decidi olhar debaixo da cama. Aos poucos, fui levantando as cobertas e pude vê-lo. Tinha olhos esbugalhados, era grande e, para ser sincero, mais parecia um urso desengonçado.
Durante uma interminável fração de segundo, tudo parou. O tempo no relógio, o entra e sai de ar de meus pulmões, o giro dos planetas em órbita, tudo foi interrompido no instante em que me deparei com aquela criatura de olhar assustado e triste. Há meses que aquela mesma sensação de medo me visitava em sonhos e me acompanhava por onde quer que eu fosse em meus desenhos e pensamentos. Absolutamente nada parecia fazer sentido.
Eu não sabia o que fazer, e, por não saber, afirmo que, movida unicamente por instinto, abaixei-me e o envolvi em meus braços. De alguma maneira, eu sabia que ele precisava de mim. Via medo em seu olhar e, talvez por isso, não o temia, por mais estranho que isso pareça ser. Uma criatura tão desengonçada não poderia me fazer mal. Lembrei-me dos conselhos de mamãe sobre não falar com estranhos. Sem dúvidas, ele era estranho. Mas certamente não faria mal conversar um pouco com ele. Afinal, não havia mais ninguém no quarto. Minha mãe jamais saberia o que acontecia ali. Hesitei por uns segundos, pensei, pensei... mas não resisti. Sorri cordialmente e perguntei seu nome.
Então ele me conduziu ao espelho na parede da frente. Dei de cara comigo mesma, aterrorizada. Não seria isto o óbvio, ver a sua própria imagem diante de um espelho? E respondi: Ana. Meu nome é Ana.
Aquele ser extremamente estranho segurou minha mão com força. Por um momento, pensei que fosse fazer algo, mas, não, ele a colocou em seu coração:
— Aqui bate um coração que pulsa como o seu, menina! Não precisa ter medo, não vou lhe fazer nenhum mal! Bom, quer saber mesmo o meu nome? Acho esse um detalhe que devemos pular, pode me chamar de amigo, isso mesmo, amigo!
A menina sorriu de forma tímida, sem deixar a cautela de lado, afinal de contas, não se sabe o que ele poderia fazer.
Aquela espécie de urso com pelo laranja, asas verdes e calda gigante tirou de debaixo da cama uma mala com fotos de várias partes do mundo. Fiquei impressionada e me fiz a seguinte pergunta: será que ele pisou em todos esses lugares? Ele se agachou, abriu a mala lentamente e depois a fechou.
— Ei, acho que você precisa de um pouco mais de luz, não que você seja escura, pelo contrário, vejo uma luminosidade fascinante em seus olhos. No mesmo instante, ele abriu a mala e, de forma misteriosa, raios de luz com fortes rajadas de vento começaram a sair. Era o começo de tudo.
Esse novo amigo estranho apresentou-me um mundo novo. E é assim mesmo que acontece quando ganhamos um amigo. Ser amigo é ver boas possibilidades e qualidades em nós mesmos, enxergar coisas que não conseguimos perceber. E começou então nossa aventura juntos.
Fiz o que pediria a Dona Morte: segui a luz. Parece bonito, mas a verdade é que dei uma narigada no fundo da mala e, antes mesmo de doer, a mala fechou-se como uma guilhotina. Vi-me num labirinto que, como todo labirinto de todo livro, era gigante, mas esse não tinha aspecto ameaçador. Era bem familiar pra falar a verdade.
Eu conhecia aquele cheiro, aquelas cores, aquela “vozinha” que ecoava entre os muros e aquele dragão-rato-urso que insistia em ser chamado de Amigo, é claro.
E o Amigo conduziu-me por entre os caminhos do labirinto. Senti-me a própria Alice e me enchi de coragem para continuar. Não deixei minhas dúvidas pra trás. Questionar é preciso, penso eu. Mas resolvi não deixar que o medo me impedisse. Então fui. Na verdade fomos, eu e o Amigo...
Ao passar pelos corredores, percebi vários porta-retratos de pessoas felizes em seus momentos de lazer, aniversários com pessoas reunidas em volta do bolo ou confraternização em volta da árvore de Natal. Eram muitos momentos, era impossível contabilizar quantos, mas o fato é que sentia que tudo me era familiar, parece que eu tinha vivido aquilo antes. À medida que eu andava pelos corredores, aquele mostro que inicialmente me dava medo, diminuía. Era impressionante, mas a cada passo que eu dava, menor ele ficava e mais rápido andava. De uma hora para outra, comecei a me sentir tonta, sem ar para continuar meu caminho. Foi então que caí naquele chão gelado.
Era manhã. Acordei assustada e suando muito. Sentei em minha cama e quis entender o que estava acontecendo. Foi um sonho, um devaneio infantil. Não acreditei que, na altura dos meus 83 anos, ainda havia espaço para sonhos como esse. Levantei, dei alguns passos e fui em direção a minha escrivaninha velha, toda carcomida pelo tempo. Olhei para o espelho, coloquei a mão no rosto e percebi as rugas que o tempo deixou em mim. Na verdade, aquelas marcas eram o reflexo daqueles labirintos, o exemplo fiel da minha vida. Só de olhar era possível perceber em qual momento da minha vida elas surgiram.
Não consegui entender o motivo pelo qual aquele ser de asas exótico e imenso apareceu. A única coisa que me veio à mente foram os desenhos que meus alunos faziam, pois gostavam de ilustrar monstros e seres inimagináveis. Prefiro não entender o significado dos sonhos, pois o mais importante é vivê-los. Então, voltarei a dormir e, assim que acordar, contarei a experiência que tive para minhas amigas aqui do asilo e esperar a visita dos meus filhos, pois amanhã é Natal.
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