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Tecer o plano

  • Uma pá de histórias
  • 14 de dez. de 2015
  • 12 min de leitura

Capítulo 3

Com o tempo, prédios sobem, concreto se espalha, casas são destruídas. É o progresso, dizem. A mim não importa, pois simultaneamente sinto a pele de asfalto e a de grama, a de tijolo e a de árvore. Há uma extensão de mim grande o suficiente para que essas pequenezas do “avanço” sejam desinteressantes. O que me importa são as personagens, os atores, os agentes. Vejamos um que me chama a atenção no momento, que, por coincidência, está em um cenário mais bucólico — e mais sombrio.

* * *

Ele acordou naquela manhã cinzenta. A paisagem nublada condizia com as horrendas alucinações que constantemente anuviavam sua mente. Era preciso forças para se levantar daquele gramado no meio do nada em que ele estava deitado. A dúvida de como havia passado a noite ali pairava em seus pensamentos, assim como os fantasmas do pesadelo doentio. Lavou o rosto ao chegar à casa simples na roça e parou para recuperar o fôlego que agora lhe faltava. Os suspiros que se seguiram sucessivamente expressavam ao exterior o espanto e o medo que lhe tomavam. O rádio ao lado da intocável bíblia sagrada tocava a velha moda de viola. Esperava que a música expulsasse as palavras de horror que insistiam em gritar em suas divagações. A fumaça do cigarro se esvaía no ar, mas não sua angústia e seu cansaço, estes permaneciam em cada parte de seu corpo tenso.

Buscou, então, conforto nos braços de Maria Madalena, naquele mesmo quarto do prostíbulo, naquela cama imunda onde tantos outros também já estiveram. E, no entanto, a tensão se exprimia em cada músculo de seu corpo e nas pesadas respirações. Ele arfava como se houvesse um peso dentro de si que precisava expulsar do seu âmago. O homem sentou-se à beira da cama, os músculos nervosos, os lábios trêmulos expulsavam com dificuldade as palavras para fora:

— Tem uma coisa ruim atrás de mim. Eu to vendo uma... não sei, aquilo tá me vendo!

A prostituta não conteve o sorriso cínico que veio aos seus lábios carnudos. A fumaça do cigarro ocultava o rosto jovem, mas os risos debochados reverberavam com precisão aos ouvidos do homem.

— O quê? — A cada palavra um risinho ou um som descrente. — Era só o que me faltava! Para de conversa fiada e vem aqui, vai.

As palavras de Maria Madalena eram como cálidas chamas da luxúria em meio à frieza do medo que lhe cobria cada pensamento. Ele atendeu ao chamado do desejo, voltou aos braços da amada, naquela breve tentativa em busca do prazer. No entanto, a loucura estava lá, espreitando cada canto soturno de seus pensamentos. Não eram mais as mãos da prostituta que o seguravam, mas sim o temor que o torturava e sufocava, punia-o com as visões mais horrendas. A criatura com máscara de porco e olhos abissais jazia na cama de Maria Madalena, o tronco sangrento, as mãos remexendo nos restos de carne e vísceras.

As vozes ecoavam em sua cabeça uma passagem bíblica que ele pouco compreendia e que lhe causava arrepios: — Portanto os pais comerão a seus filhos no meio de ti, e os filhos comerão a seus pais; e executarei em ti juízos, e tudo o que restar de ti, espalharei a todos os ventos.

(Foto: Daniela Toledo)

O homem despertou ao lado de Maria Madalena, arfando e tremendo, como se todos os seus devaneios estivessem presentes em cada detalhe do real. Ele tentou, debalde, proteger seu corpo do frio que apertava cada parte de seu ser. Imóvel, sem reagir a qualquer estímulo, ele apenas olhava vidrado sem nada enxergar, como se visse além daquilo que o rodeava, ou como se aquele cômodo pequeno, antes vermelho como a luxúria, fosse feito apenas de sombras. A prostituta tentou despertar o companheiro daquela paralisia em que ele se encontrava e fracassou, pois os braços daquele medo irreal o seguravam com uma força estrondosa. Como resposta, o homem apenas grunhia palavras irreconhecíveis e sem nexo.

* * *

Os toques podem servir como consolo ou estímulo. São uma mensagem silenciosa. Assim como na linguagem oral, os signos possuem diversas interpretações. Um contato carinhoso, na hora errada, pode assustar. Encostar em algo, dependendo da pessoa, pode despertar repulsa ou tesão. Observo cada sujeito com a sua individualidade, reagindo às ações do tempo e do espaço. É um jogo tácito interessante tentar perceber qual das diversas possibilidades de um toque se desenrolará.

* * *

Procurávamos a outra sala, a sala bi. Mas, sejamos sinceros, era uma nomenclatura para não ofender os mais sensíveis — pois os egos existem em todos os lugares. Procurávamos os filmes gays. Um senhor que por ali transitava nos ajudou a achá-la atrás de uma lona grossa, que despertou os mesmos sentimentos que a maçaneta da entrada. O toque, mesmo que em objetos, tem consequência na gente. Era menor, tinha menos poltronas e estava mais vazia. Mas existia algo a mais. O filme era exibido na direção oposta e nas paredes de fundo com janelinhas; no outro extremo, havia também glory holes, um espaço para os paus dos — agora nem tanto — voyeurs se relacionarem com a última fileira.

No início, havia apenas um homem na segunda fileira, com uma mochila sobre o colo, impassível diante dos cus e caralhos na tela. Sentamos na última fileira, ainda sem percebermos o que poderia cutucar nossos ombros. Nada acontecia. Tudo ainda muito limpo, ainda muito tenso, muito parado, muito pudico. As paredes azul-escuras não forneciam o tom que esperávamos e as pessoas, a putaria que queríamos.

Ficamos então, em fileiras diferentes, esperando que, sozinhos, tivéssemos uma presença menos inibidora — e que nada passasse pelos buracos da parede de trás. Sentaram-se ao meu lado dois homens diferentes, um de cada vez, mas não se dirigiram a mim; o silêncio permeava todos os espaços e apenas os gemidos dos filmes eram ouvidos. A minha visão periférica permitiu identificar movimentos muito familiares — virar o rosto para ter certeza poderia ser uma resposta afirmativa a um convite que não se sabia ao certo qual era. Então esperei até que fossem embora. Oportunidades certamente surgiriam aos mais abertos.

* * *

Oportunidades às vezes são inesperadas, e não agarrá-las pode ser uma escolha consciente; por outro lado, também podem ser consequência de esforço e planejamento. Nesse caso, não aproveitá-las é, no mínimo, incoerente. Quando surge a chance de fazer aquilo que é capaz de nos mover, é imprescindível não deixar o momento passar.

* * *

Ao terminar o doutorado no Rio de Janeiro, Nilson retornou para a serra com a mosca do cinema zumbindo mais uma vez em seus ouvidos. Conheceu o Grupo de Cinéfilos e Produtores Culturais “Luzes da Cidade”. Sua participação consistia em assistir aos filmes inscritos no Festival Primeiro Plano, já em sua segunda edição. A vontade de fazer cinema começava novamente a apontar o norte.

Ele propôs aos amigos e a partir daí sua relação com o meio cinematográfico mudou de espectador a membro do núcleo realizador. Num primeiro momento, foi convidado a participar do júri e, em 2004, passou a trabalhar na coordenação de mídia do festival.

Se olharmos o festival em suas entranhas, é fácil perceber que um mais um somam bem mais que dois. Nilson, que além de cineasta é professor universitário, passou o bastão da coordenadoria de mídia para sua antiga aluna de mestrado, Marília Lima. Atualmente, ele é o responsável pelas oficinas realizadas durante o Primeiro Plano.

(Vídeo: Thiago da Silva Camilo)

Ao longo dos anos, o trabalho com Aleques Eiterer tem sido constante. Na edição de 2015, o professor atuou na montagem do curta “Um Pouco a Mais”. O filme retrata o encontro de dois amigos que há muito não se viam e os problemas que emergiram desse reencontro. Coincidência ou não, os dois amigos se distanciaram por questões do dia a dia, mas as mudanças não interromperam a parceria.

— Aleques sempre me convida para trabalhar em seus filmes. Já trabalhei em quatro montagens e mais recentemente dei uma força no curta documentário sobre Aracy de Almeida, 'Araca — O Samba em Pessoa'.

O fundamental para ele é ter ao mesmo tempo prática e a teoria, o que reflete em sua atuação docente. — A possibilidade de levar o conhecimento cinematográfico aos alunos e, mais do que isso, mostrar que é possível fazer cinema na tangente das produções multimilionárias e com qualidade é impagável.

No momento, Nilson está trabalhando na montagem do filme “Minas Hotel” — dirigido por Marília Lima, presença feminina marcante na produção cinematográfica juiz-forana. Mas esta já é uma outra história...

* * *

E nesse vai e vem, entre encontros e desencontros, e nos emaranhados de nós, vocês estão sempre se reinventando, criando, procurando respostas e construindo novas histórias. Nelas, muitos são deixados para trás e, outros tantos, mesmos calejados, permanecem. Às vezes, pode ser inspirador sair de si e viver através de outro ser, de outras culturas. Acho que aí está o segredo dos grandes artistas.

* * *

A casa escolhida para contar a história de Lara é localizada na Rua Halfeld, ponto de grande trânsito de pedestres e com arquitetura marcante em Juiz de Fora, que remete à memória, ao passado a que a protagonista tanto se agarra. A proprietária, Malu, já está com setenta e poucos anos, mas tinha energia e animação sobrando. Conversava com toda a equipe, prestigiou o lançamento do curta no Cinearte Palace e sempre comenta com orgulho sobre o filme.

Além de receber a equipe durante dois dias, Malu teve ‘lembrancinhas’ deixadas em sua casa: os pintinhos faziam suas necessidades em todos os lugares possíveis, mais literalmente do que desejavam os que diziam “Merda!” antes das gravações. As aves eram trocadas durante os dias de filmagem, pois cresciam rapidamente e podiam causar erros de continuidade no curta-metragem. Eles também provocaram outros transtornos: Marcinha tinha medo das aves e demorou para se acostumar com a proximidade exigida pela sua personagem.

Além de se preocupar com a interação entre a atriz e o animal, existia também uma atenção especial à maquiagem — ela precisava manter as caraterísticas da festa do dia anterior, mas parecendo desgastada pela noite de sono.

A rotina intensa e minuciosa é estressante, porém uma equipe alimentada é uma equipe feliz. Sempre havia uma mesa com café, pão e biscoito, cuidadosamente arranjada pelas produtoras, para que as horas de gravação não pesassem tanto sobre os profissionais.

Pausa para o café!

Mergulhar fundo em águas desconhecidas pode dar medo no início, mas, ao descobrir que é seguro dar o passo à frente, tudo se torna mais fácil. É necessário apenas ter coragem. Um novo personagem pode fazer com que surjam desafios na vida de quem o interpreta. Para ser fiel ao que se deseja mostrar, é preciso muito empenho, tanto do ator, quanto do diretor. Um penteado, um batom vermelho, uma blusa colorida… Pequenos detalhes podem ser cruciais.

* * *

O início da construção do personagem pelo diretor é fundamental para o desenvolvimento do ator. No caso do curta Jonathan, a atriz experimentou antecipadamente o figurino que tinha a ver com o personagem, parte da maquiagem e do cabelo.

— A Lara é uma personagem muito diferente de mim, e essa caracterização ajuda muito a gente que é ator a achar um caminho.

O ator, no entanto, não desenvolve apenas depois da escolha do figurino, mas este entra como elemento na composição, ajuda a dar o clima. — Você tem uma ideia, mas, no momento em que está com aquela roupa, começa a entrar mais no clima das coisas — conta a atriz, exemplificando com uma personagem de 70 anos que teve que interpretar quando tinha 35. O agasalho, a blusinha por baixo, a saia, os óculos e o sapatinho (de vovó) influenciaram. Desde a forma de caminhar até os gestos, o ator interage e dialoga com o figurino, seja mexendo na roupa ou ajeitando os óculos.

Além desses aspectos que compõem o figurino do personagem, Marcinha também destaca a preparação do elenco, que nem sempre faz parte do trabalho, mas é de extrema importância. Cada filme é um trabalho diferente. Dependendo do tema, a equipe desenvolve alguns laboratórios, dinâmicas, lê os textos, aprimora a fala do personagem.

— Dois, três, quatro encontros é bom para se conhecer melhor, você facilita para que as coisas aconteçam mais corretamente dentro do set de filmagem. Você entra mais seguro no set.

Para Marcinha, interessa o processo, que é o que diz respeito ao seu trabalho. — É a conversa em cima do roteiro, é a discussão e fala, de construção, no set... O filme pronto, eu não gosto nem de ver.

* * *

A arte de interpretar talvez esteja em doar-se por completo ao personagem. Do cristão ao ateu, do emocional ao racional, do cauteloso ao impetuoso, e por aí vai. A vocação, se é que assim posso dizer, é para poucos, é a oportunidade de se reinventar e viver uma nova vida a cada personagem. Isso serve para outros projetos. É o desafio de abandonar medos e entregar-se por completo ao seu novo eu, nem que seja por algumas horas, dias, meses ou até por toda a vida.

* * *

(Foto: Leiliane Germano)

“Não me lembro mais da vida

Antes que me apaixonei.”

A primeira parte da fossa é quando você acredita que vai substituir aquele amor por outro. Inconformismo, o pior defeito dos amantes. Só que a cordinha, a lembrança, ainda está amarrada no dedo. Ela te corrói por dentro e sempre, ao tentar desamarrá-la, aumenta um pouco mais. Nessa hora, você sente o peso da bagagem chamada amor antigo que insiste em estar ali.

Nos dias de fossa, tudo perde a cor. E quando a embriaguez do vazio domina a cabeça, o verniz é esquecido. Não existe mais calendário e nem hora de dormir. No início tudo é silêncio e em dias de sorte dá para ouvir de leve o ranger da madeira. Depois era só ele que eu ouvia. Com uma risada debochada e palavras afiadas, ele jogava na minha cara o fim que eu não queria ter. Ironicamente, ele era eu e eu era ele. Mas ainda assim, ao mesmo tempo em que me aconselhava e tentava abrir meus olhos, ridicularizava-me feito um palhaço abandonado em seu próprio picadeiro. Debaixo de sua capa, escondiam-se memórias. Talvez tenha sido lá que deixei as velhas inspirações.

Enquanto o relógio desregulava, a barba crescia e a cabeça latejava, senti algo ruim desabrochar em meu peito. A ficha se aproximava do fim da queda, ponto de chegada que eu não queria enxergar. Um tom negro tomava conta pintando a roupa e o olhar. A raiva é beber o veneno esperando que o outro morra.

Afogado em talagadas e palavras vãs, queimei suas fotos em meio aos cigarros. E no carrossel de minha aflição abandonei meus tormentos, lamentos e choros abafados no ódio da perda. Seu rosto? Não pintarei mais. Seu gosto? Já se misturou ao amargo da bebida. Sua voz? Virou ruído em meio aos meus gritos. Não te tenho mais em meu diário, pois as páginas molharam com o choro.

Quando não havia mais nenhum vestígio seu na casa, decidi apagar as cicatrizes. De balada em balada, ofertei-me em busca de migalhas de amor. Pobres inocentes que passaram pelo meu caminho. Despi-me de qualquer pudor, subi na mesa, dancei e por horas esqueci seu nome. Mas, quando o último gole secou e o copo trincou, senti o vazio invadir o peito e lembrei-me daqueles versos. Ainda me lembro daquele menino acanhado, de apenas sete anos, que subiu no palco no concurso e apresentou sua trova. Naquele momento, eu não tinha medo, era como se o mundo não pudesse me alcançar. Afinal, “Deus é feito poesia e também sabe o que faz, tem amor para todo o dia e deseja toda a paz”.

* * *

Quem nunca se sentiu na fossa por conta de alguém que partiu? Os sentimentos humanos são bem mais profundos e conflitantes do que podemos supor. Amor e ódio, alegria e tristeza, coragem e medo. Esse último, bem ali, escondendo-se debaixo da cama.

* * *

Olá, monstrinho

Mas que barulho chato é esse? Aqueles ruídos mais pareciam algum roedor. Receoso, decidi olhar debaixo da cama. Aos poucos, fui levantando as cobertas e pude vê-lo. Tinha olhos esbugalhados, era grande e, para ser sincero, mais parecia um urso desengonçado.

A princípio tive medo, depois curiosidade. Após um longo período em que passamos nos observando, resolvi perguntar quem era, mas ele só sabia falar: nham nham nham. Perguntei-me se era algum idioma alienígena, mas conclui que talvez não soubesse falar. Então lhe batizei como Nham-Nham. Pedi-lhe que durante o dia ficasse em silêncio para minha mãe não encontrá-lo. Prometi que, ao chegar da escola, traria comida e chocolate. Fomos nos acostumando um com o outro.

Um dia, cheguei em casa e achei meu diário jogado no canto do quarto. Ao abri-lo, senti falta de algumas páginas, mas não conseguia me lembrar de que dia ruim elas falavam. As páginas se foram junto com as memórias. E quem as devorou foi justamente ele, Nham-Nham. Não lhe bastavam os lanches que preparava escondido da mamãe? Bicho guloso!

Cada dia era uma história e passei a me esquecer aos poucos das brincadeiras na antiga casa, do xadrez com o papai e do bolo de fubá da vó Diná. Nem lembrava mais do cheiro da chuva que não caía há alguns dias. Meu Deus onde estão minhas lembranças???? Nham-Nham!!!!!

Como pode alguém esquecer tudo o que viveu? Com o desfolhar de páginas, vi minha vida perder suas formas e a infância se apagar devagarzinho de meu coração. Queria que meus problemas fossem embora e não minhas alegrias. Só restaram as lições de matemática e as tarefas de casa. Até o rosto do papai estava menos nítido quando fechava meus olhos. Nem sei mais que cor tinha o meu antigo quarto. Esquecer os momentos ruins parecia ser tão fácil. O plano era jogar página a página os dias ruins, as dores de barriga, o medo do escuro e tudo que eu não queria reviver fora. Mas o tempo corrosivo, feito relógio desenfreado, não teve pena de mim. A brincadeira foi muito além do que esperava, pois esqueci o mais importante que eu tinha: a minha vida.

(Foto: Leiliane Germano)

 
 
 

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