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Encontro marcado

  • Leiliane Germano
  • 18 de dez. de 2015
  • 3 min de leitura

Vim de longe, de outro século, de outra cena. Ainda lembro-me do antigo calçadão, um pouco mais jovem e menos movimentado. Caminho por aqui com ares de velho conhecido. Quantas noites vi a Halfeld se iluminar e a chuva molhar os meus sapatos. Ainda ouço o som dos risos infantis e sinto o cheiro da pipoca na frente do cinema.

Hoje os cabelos esbranquiçaram, ganhei olhar sereno e carrego em mim traços do tempo. Assemelho-me a ele, velho amigo, lutando contra o esquecimento. Memória ingrata escorre gota a gota na batida do relógio. Anda de mãos dadas com a sobrevivência e na contramão da dignidade. Ainda tento desviar-me dela. Uma vez ou outra consigo, mas às vezes ela me puxa pelo braço e chama: João, venha cá menino.

Na esquina da Batista com o calçadão mora um senhor acanhado. Em sua fachada escura se escondem histórias, parte delas eternizadas em sua grande tela branca. Das suas escadas lembro-me do belo tapete vermelho capaz de fazer qualquer cidadão sentir-se um lorde. Das glamorosas sessões recordo-me como se fosse ontem das belas damas hollywoodianas a encantar o público. Hoje vejo esta longa fila à espera da estreia de mais um Festival Primeiro Plano. Ouço-o sussurrar seu medo com a voz embargada: Será meu último grande espetáculo? Procuro uma resposta, mas apenas consigo olhá-lo.

Arquivei os frames de minha vida na caixa chamada memória. Mas onde vivem os sonhos do velho Palace? Vê inúmeras pessoas passarem por seus pisos, sente o calor de cada um, mas encontra-se em um gélido descaso. Incerteza cruel. Em que data reside o amanhã? Aquelas paredes que um dia trouxeram lindos adornos hoje mal abrem espaço para cartazes de filmes.

Diferentes rostos, sorrisos e expectativas quanto à programação deste ano. A fila começou a movimentar-se. Ansioso, logo tratei de acompanhá-la. Aos poucos vi a sala encher-se e as luzes se apagarem. O ambiente tinha cheiro de saudade. As poltronas grenás me fizeram relaxar e, enquanto a vinheta começava a rodar, vi meus olhos se tornarem projetos, e um filme começou a rodar à minha frente. Em instantes revivi os saudosos anos vinte e minhas experiências cinematográficas. Pude ouvir as manifestações populares. Carnavais, festas do dia do trabalhador, procissões e até mesmos corridas de automóveis, todas eternizadas em minhas lentes. Das sete vezes que Vargas visitou a princesa de Minas, cinco foram registradas por mim. Minha história se mistura com a da cidade. Em um enlace de nostalgia e poesia.

De repente fui despertado de meu breve sonho. Começava a pintar a tela o filme O Último Cine Drive-in. Ironicamente (ou não), a produção narra a luta por sobrevivência do último cinema a céu aberto em Brasília. No meio da exibição comecei a notar o público ao meu redor. Olhos atentos às cenas. Dava gosto de assistir. Eles nem haviam nascido quando o Palace abriu suas cortinas. Eles não o conheceram em seus tempos de glória. Nem sei mesmo se já pararam para ouvir as histórias que seus pais contam sobre ele. Mas agora, nesse momento de incerteza, basta apenas observar esses olhares. Há quanto tempo nosso velho amigo não deve ter esperado por esse momento. Ser amando, desejo escondido no peito de cada um de nós.

Quando as luzes se acenderam, houve burburinho e aplausos, e uma fagulha fez encher o ambiente de esperança. O ano está dando seus últimos passos rumo ao renascimento. Enquanto as poltronas esvaziavam-se e as luzes apagavam pouco a pouco, sentia que partes dele também acompanhavam aquelas pessoas. E o silêncio barulhento de quem não quer descansar me lançava um pedido por companhia. Sentei-me ali no degrau, coloquei minha mão em seu carpete como quem faz um carinho e disse: Olá meu querido, prazer me chamo Carriço.

*Agradeço ao William Barter por todo apoio durante a edição do vídeo

* Participação especial Thiago Camilo

 
 
 

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