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(Não) Vou crescer

  • Caroline Marino e Leiliane Germano
  • 18 de dez. de 2015
  • 6 min de leitura

Há na memória um rio onde navegam

Os barcos da infância, em arcadas

De ramos inquietos que despregam

Sobre as águas as folhas recurvadas

(...) E tudo quanto é rio abre no canto

Que conta do retrato a velha história

José Saramago

Pronto, última caixa lacrada. Minha mão suja de tanto embrulhar coisas em jornais. O coração apertado pela despedida. Onde está o meu ursinho? Manhêeeeeeeeeeee? Os últimos segundos são os mais dolorosos. As paredes começam a gritar e os olhos relembram cada aventura vivida na torre do castelo. Lembro-me do dragão atacando nosso reino e da neve congelando a cabana feita de lençóis. O colchão ainda tem cheiro de pólvora das batalhas entre piratas. E uma mancha verde de tinta no canto da janela conta o dia em que o quarto tornou-se uma selva.

A cada degrau que eu descia mais vontade de voltar eu tinha. Por que temos que nos mudar? A casa é ótima, não preciso de outra. Mas minha mãe disse que era necessário. Não entendo por que os adultos acham que tudo que é ruim ou chato é necessário. Para mim necessário é comer, tomar água e brincar na rua no sábado. Isso sim é imprescindível. Será que ninguém me ouve? Eu não quero me mudar!

No fim da escada, vi uma caixa mal fechada me mostrar a beirada de um álbum. Sentei. Nove anos em algumas fotografias. Parece que foram ontem meus primeiros passos em cima do tapete da sala. Ainda me lembro do dia em que quebrei o bibelô que minha mãe ganhou da vovó. Nunca tive tanto medo de ser descoberto. Sentirei saudades dos almoços de domingo na varanda, de meu pai me balançando na gangorra, do cheiro do pão de queijo nas tardes de feriado.

Que graça vai ter passar Natal, aniversário e Páscoa em outro lugar? Eu nem sei se lá terá espaço para minha mãe fazer o caminho do coelhinho até os ovos de chocolate. E se não tiver espaço para fazer a minha festa de aniversário? Abandonar aquilo que se ama é dolorido. É pior do que cair e se ralar todo ou apanhar em uma briga na porta da escola. É como se um pedacinho nosso ficasse fincado no antigo lar e o coração já não fosse inteiro para a nova jornada. Algum pontinho meu ficou aqui, enterrado debaixo do carpete.

Mas ela estava ali, na porta com um sorriso no rosto e com meu urso na mão. Quando ela sorria assim, eu sabia que no fim tudo acabaria bem. E que, em qualquer lugar, eu poderia sentir-me seguro. Ah claro, ainda não me apresentei. Prazer meu nome é Lucas.

Não vou me adaptar

Um dia perguntei à mamãe por que meu pai havia ido embora. Não conseguia entender por que ele estava demorando tanto para voltar de viagem. Eu só sabia que ele estava em algum lugar longe. Não havia outro motivo para ele levar todas as suas coisas e não telefonar. E olha que aos sábados a ligação tinha desconto.

Nos primeiros dias na nova casa, eu tive medo de dormir sozinho. Depois consegui me adaptar ao novo quarto, mas com a luz do corredor acesa. Sempre ouvia ruídos no quarto, mas minha mãe dizia que era bobeira da minha cabeça. Até que um dia ela me deu um diário e pediu para que escrevesse todos os meus temores e problemas. Aquele era o meu único amigo.

Ela já estava adaptada. Parecia que sempre tinha morado ali e tentava me convencer a me sentir assim também. Mas, à medida que o tempo passava, mais irritado eu ficava. A nova escola era chata. A quadra era pequena e ninguém me queria no time de futebol. Meus brinquedos me olhavam no canto do quarto, mas eu não sentia vontade de brincar. Até o ursinho, fiel companheiro, estava coberto de poeira no alto do armário.

Passamos a brigar com frequência até que eu descobri uma nova palavra: castigo. Pelo menos agora eu tinha com quem conversar. As paredes eram ótimas ouvintes. Quanto mais o clima pesava na casa, mais eu desenhava aquilo que me irritava no diário. Com isso, passei a escondê-lo debaixo da cama para que ninguém soubesse o que me amedrontava. Esconderijo discreto, mas perigoso.

Olá, monstrinho

Mas que barulho chato é esse? Aqueles ruídos mais pareciam algum roedor. Receoso, decidi olhar debaixo da cama. Aos poucos, fui levantando as cobertas e pude vê-lo. Tinha olhos esbugalhados, era grande e, para ser sincero, mais parecia um urso desengonçado.

A princípio tive medo, depois curiosidade. Após um longo período em que passamos nos observando, resolvi perguntar quem era, mas ele só sabia falar: nham nham nham. Perguntei-me se era algum idioma alienígena, mas concluí que talvez não soubesse falar. Então lhe batizei como Nham-Nham. Pedi-lhe que durante o dia ficasse em silêncio para minha mãe não encontrá-lo. Prometi que, ao chegar da escola, traria comida e chocolate. Fomos nos acostumando um com o outro.

Um dia, cheguei em casa e achei meu diário jogado no canto do quarto. Ao abri-lo, senti falta de algumas páginas, mas não conseguia me lembrar de que dia ruim elas falavam. As páginas se foram junto com as memórias. E quem as devorou foi justamente ele, Nham-Nham. Não lhe bastavam os lanches que preparava escondido da mamãe? Bicho guloso!

Cada dia era uma história e passei a me esquecer aos poucos das brincadeiras na antiga casa, do xadrez com o papai e do bolo de fubá da vó Diná. Nem me lembrava mais do cheiro da chuva que não caía há alguns dias. Meu Deus onde estão minhas lembranças???? Nham-Nham!!!!!

Como pode alguém esquecer tudo o que viveu? Com o desfolhar de páginas, vi minha vida perder suas formas e a infância se apagar devagarzinho em meu coração. Queria que meus problemas fossem embora e não minhas alegrias. Só restaram as lições de matemática e as tarefas de casa. Até o rosto do papai estava menos nítido quando fechava meus olhos. Nem sei mais que cor tinha o meu antigo quarto. Esquecer os momentos ruins parecia ser tão fácil. O plano era jogar fora, página a página, os dias ruins, as dores de barriga, o medo do escuro e tudo que eu não queria reviver. Mas o tempo corrosivo, feito relógio desenfreado, não teve pena de mim. A brincadeira foi muito além do que eu esperava, pois esqueci o mais importante que tinha: a minha vida.

Eu (não) cresci

Manhêeeeeee! Assustado contei a ela que já não me lembrava mais de tudo como antes. Carinhosa como sempre, ela se sentou na escada e me deitou em seu colo. Ela disse coisas sobre a vida e as mudanças que a acompanham em cada fase. Descobri que viriam as espinhas, os dilemas e as responsabilidades. Tive medo, mas ela me disse que todos nós passamos ou iremos passar por isso. É normal e um pouco incômodo no início. Como temer algo que minha mãe acha normal? Ela sempre tem razão.

Cheguei aqui com a bagagem pesada, cansado e apegado a tudo o que eu não queria deixar na velha casa. Agora, me vejo aqui sentado na janela olhando para a rua vazia parecida com a minha mala. Onde foram parar meus nove anos? O primeiro dente de leite e a primeira nota dez? Talvez seja assim quando sentimos o peso do tempo em nossas costas. Talvez isso seja crescer. Não culpo o Nham-Nham por sumir com minhas memórias, culpo o tempo por ser ingrato e não pedir minha opinião. Crescer dói e deixa um frio na barriga incontrolável.

Não quero envelhecer, porque deveria? Quando crescer quero ser criança. Brincar de roda, me pendurar em árvores e jogar pelada depois da escola. A cama ainda será um enorme pula-pula e a vassoura da mamãe minha espada de capitão. Não quero lembranças ruins, essas ainda deixarei o Nham-Nham comer. Remoer momentos difíceis faz desbotar os dias.

Quero apenas dias azuis, ralar os joelhos e nadar no rio. Quando houver sol, tomar sorvete depois do almoço, comer pipoca durante o filme e mascar chiclete na hora do recreio. Não me importam as futuras rugas, muito menos as responsabilidades. Farei de todas grandes lições. E da vida uma aventura contínua. Só rezo a Deus todos os dias, para que o tempo jamais me tire o sorriso leve, o olhar inocente e a poesia.

 
 
 

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