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Rodô

  • Gabriel Zambon | CC (BY-NC-SA)
  • 20 de fev. de 2016
  • 4 min de leitura

Era quarta feira de cinzas. A rua ainda brilhava purpurina. As esquinas fediam a mijo. Tudo caminhava em passos lentos para a volta à normalidade. A rodoviária que amanheceu preguiçosa agora com sol a pino já parece mais um formigueiro remexido por algum garoto entediado.

Uma falação de deixar qualquer pessoa com dor de cabeça. Um caldo quente com cheiro de gente pingando os restos do carnaval parecia chegar a cada centímetro cúbico daquele lugar. Parecia dia de feira, uma movimentação de deixar os ressaqueados prestes a se desandar pelas plataformas.

Senhoras e senhores, o ônibus com destino a Teresópolis está atrasado devido ao trânsito na entrada da cidade e sua saída está prevista para os próximos 30 minutos. Puta que pariu! Foi o que deu pra entender da gritaria que começou a partir de uma velha gorda daquelas barraqueiras que cospem quando falam.

Água, água… Olha a água geladinha para não desidratar nesse calor do Rio de Janeiro…

A velha era a primeira da fila, lógico, seguida de quatro crianças barulhentas aos cuidados de uma moça bonita com o semblante cansado. Logo atrás um rapaz que não estava ali, com fones de ouvido, não desgrudava o olho do celular – era uma boa ideia! Seguindo na fila até onde dava para reconhecer tinha um casal de namorados que parecia vir da Zona Sul, um senhor de uns 50 anos, bigodudo e sério, com uma pasta e um jornal embaixo do braço e um molecote de chinelo e mochila que não parava de olhar para os lados como se caçasse o ônibus para partir.

Documentos em mãos, por favor! Desceu falando alto o motorista antes de pisar na plataforma. A gorda que já estava vermelha de gritar e suar foi correndo para sua poltrona. Documento, por favor! Subiram as crianças com a moça bonita, o garoto que não estava ali, o velho, o casal da Zona Sul… Documento, por favor! Subiu o rapaz de chinelo e mochila que agora não caçava mais o ônibus mas ainda mantinha os olhos atrevidos por todos os lados, agora caçando a poltrona 29. Achou! do lado do rapaz que não estava ali e bem longe das crianças. Esboçou um sorriso.

Com licença, minha poltrona é a 29… vou só dar uma pa-s-s-a-d-i-n-ha, obrigado, ufa! Se desmanchando na tão sonhada poltrona na janela com ar condicionado, sorri enquanto tira a mochila do colo e a coloca embaixo da poltrona, protegida pelas pernas. O ônibus parte e os ânimos vão se acalmando. O que era o grito da gorda se transforma no ronco do velho e as crianças já não berram como animais e isso é ótimo. O garoto conectado agora dorme de boca aberta com o celular na mão e um dos fones fora do ouvido. O caçador busca pelo tato. Com os olhos fechados suas mãos batucam no braço da poltrona, sem ritmo parece nem se dar conta do que está fazendo. Só bate para a viagem ir mais rápido.

Por incrível que pareça o trânsito flui bem. O motorista tentando compensar o atraso acelera firme. Da poltrona 29 a visão que se tem é, à direita, o rapaz de uns quase 30 anos dormindo de boca aberta com um sertanejo bem ruim saindo do fone que não estava em seu ouvido e, à esquerda, a subida da serra, que a cada minuto que se passava na estrada amenizava um pouco mais a temperatura e deixava o ar condicionado mais frio. Putz, foi só falar bem que a fila de carros apareceu na nossa frente logo no meio da curva.

No tranco da freada do motor meia dúzia caíram da poltrona, e entre elas a gorda, que já acordou ronronando alguma coisa que ninguém mais fazia questão de entender. O ronco do velho parou e o boca-aberta deu um salto perguntando o que estava acontecendo. O caçador manteve os olhos fechados e os dedos batucando até que uma das crianças gritou num som agudo – É a polícia, deve ser uma blitz! Os olhos do caçador abriram em direção à janela. Os dedos se agitaram ainda mais e as pernas travaram a mochila embaixo da poltrona. Ao mesmo tempo o boca-aberta-que-não-estava-ali agora estava, e com cara de espanto, mas mandando mensagem. A gorda, como esperado, já estava de pé colocando a cara onde não era chamada e tentando adivinhar o que tinha acontecido. Tem até cachorro policial lá fora, devem estar procurando droga.

Do lado de fora do ônibus tem três carros da Polícia Militar com o giroflex ligado, uns dez policiais e dois cachorros disse o velho. Um dos guardas estava conversando com o motorista gesticulando com um papel na mão quando abriram o bagageiro. Um policial de guarda na porta do ônibus e o resto fazendo uma meia lua em frente às malas no chão. Dentro do ônibus todos queriam saber o que estava acontecendo. Todo mundo se apertando do lado direito, com as caras no vidro tentando decifrar o que se passava. – Todos em seus lugares! Veio a voz imponente do policial que deve ser o comandante da operação. Os olhos do caçador novamente se fecharam, seus braços e pernas agora tremiam. Ele suava. O barulho do coturno se aproximando em passos lentos rompia o silêncio que se instaurava no interior do ônibus. – Mão na cabeça, fica de pé e de costas pra mim. Tenho umas perguntinhas pra te fazer vagabundo, vamo lá pra fora.

O caçador abriu o olho tremendo a ponto de perder o controle das mãos. A voz do policial parecia vir colada aos seus ouvidos e isso lhe dava pontadas na espinha. – Você mesmo da poltrona 28... Quando o caçador teve coragem de abrir o olho já estavam descendo com o boca-aberta-que-não-estava-ali. Quem diria hein...

A gorda de prontidão já fazia o papel do juiz, de pé cuspindo em todo mundo suas asneiras quando mais uma vez o policial sobe a bordo. – Tivemos uma denúncia de tráfico de drogas nessa linha de ônibus e apreendemos sob posse do passageiro cerca de 400 papelotes de cocaína. Andando pra frente e explicando a situação o guarda se aproxima da poltrona do caçador.

– Você viu algo estranho, tem alguma informação que possa nos passar?

O caçador se transformou na presa. Tremendo sem conseguir falar acenou não com a cabeça. Num reflexo apertou ainda mais a mochila entre as pernas e a poltrona. –Você poderia me mostrar o que tem na mochila?

Baseado em fatos reais.

 
 
 

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