A rua como destino
- Isabella, Layrha e Vinícius | CC (BY-NC-SA)
- 4 de mar. de 2016
- 4 min de leitura
São homens, mulheres e crianças pelos cantos das cidades. Dormem e acordam diariamente sob sol forte, chuva e frio da madrugada. Para muitos, são poluidores visuais dos grandes centros. Para o governo, são “pessoas em situação de rua”.

Para eles o momento que vivem faz parte de uma opção| Foto: Isabella Dias
Só em Janeiro, o Centro de Referência Especializado Para População em Situação de Rua (Centro Pop), serviço da Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS) da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), realizou 3.791 atendimentos; 61 deles envolvendo recebimento de auxílio para voltar a suas cidades de origem. A coordenadora do Centro Pop, Fernanda Simeão, comenta que a abordagem dos moradores de rua tem que ser delicada. “Perguntamos, com cautela, se há o interesse de voltar pra cidade de origem. Muitos não querem. Mas os que querem, nós damos auxílio para voltarem.”
Além do Centro Pop, há uma roda de conversa com pessoas em situação de rua, que acontece duas vezes por mês, organizada pelo Centro de Referência em Direitos Humanos Juiz de Fora. O objetivo das reuniões é contribuir com o modo crítico de pensar os papéis socialmente construídos pelas histórias e relações desiguais de classe, gênero e etnia, além de reafirmar o compromisso com espaços que possibilitem a voz dos divergentes e ocorre em um ambiente simples e acolhedor. Os encontros permitem que as pessoas em situação de rua participem de conversas dinâmicas e descontraídas, sempre envolvendo alguma refeição.
A equipe de reportagem do Uma Pá de Histórias participou de um desses encontros e conheceu um pouco do cotidiano dessas pessoas. Miguel foi o primeiro a conversar com a gente. Ele tem 21 anos. É natural de Valinhos, São Paulo, e mora em Juiz de Fora há cinco anos. A mudança para a nova cidade aconteceu quando se apaixonou por Luísa, também moradora de rua. “Não tinha dinheiro, mas a gente batalhou junto e conseguiu grana. Estamos aqui juntos.”
Miguel já passou por tantos lugares, que conta nos dedos pra não esquecer. Os mais especiais, segundo ele, foram: Valença, São Paulo, Salvador, Recife e Juiz de Fora. Questionado sobre morar na rua, Miguel fixa os olhos em nós, e responde: “Escolha. Eu tenho casa e família. Gosto de viver na rua. A rua é meu lar.”
Depois da nossa conversa com Miguel, conhecemos Borboletinha - Welton de nascença, mas que não abre mão do apelido. Aos poucos, foi se soltando. Ela nos contou que está em Juiz de Fora há mais de 20 anos. É natural de Santa Luzia, Bahia. “Cheguei bebê de colo em Juiz de Fora e fui morar nas Aldeias SOS com uma mãe social. Eu fui ficando mais velha e comecei a ficar curiosa pra saber quem era a minha mãe. O antigo presidente da Aldeia conseguiu o contato da minha tia e consegui conhecer minhas origens. Com 17 anos eu fugi para rua e estou até hoje.”
Aos 19 anos, foi pro Rio de Janeiro, mas achou muito difícil viver por lá. “A comida ficava em um barril, parecia lavagem, e nós, os moradores de rua, tínhamos que se estapear para conseguir comer”, relembra Borboletinha. “Voltei porque estava com saudade de Juiz de Fora. Aqui a gente come muito bem, não falta nada.”
Se ela tem vontade de ter um lar? Tem. “Mas a rua é tão divertida. Sou feliz, conhecida e tenho bons amigos”, fala, com um sorriso no rosto.
Dona Maria, aliás, Branquinha, como gosta de ser chamada, com um olhar desconfiado, percebe nossa aproximação. E logo explica o motivo do apelido: “Essa cor aqui é de Sol e sujeira que levo da rua. Eu sou branca de olho azul.”
Branquinha, 55 anos, é natural de Campos de Goytacazes, Rio de Janeiro, e mora em Juiz de Fora há 48 anos. Veio com a mãe que sempre morou na rua, e nunca gostou de ficar em casa. “Minha mãe dizia que a gente já morou em casa, mas não me lembro. Lembro das ruas de Campos, mas da casa, não”, comenta. Perguntada sobre como é morar na rua, ela diz: “Olha, não sei. Sou sozinha e aqui na rua tenho meus amigos e comida. Essa rua aqui vive cheia, não me sinto sozinha. Não sinto falta de nada.”
Branquinha fala de Juiz de Fora com amor e segurança: “Posso não saber o que vocês sabem, mas tenho certeza que não sabem o que eu sei. Sei que o sinal da rua para de mudar de cor meia noite em ponto. Às duas horas da manhã, mais ou menos, a Avenida Rio Branco fica em total silêncio, uma paz só. O último ônibus é laranja e passa às 1h40.” Questionada sobre o horário, responde, com um sorriso de canto de boca: “Olhando pro céu, olhando para o ônibus, para as pessoas, as lojas abrindo. A rua ensina, é uma grande casa e tenho até orgulho de falar que eu me criei e me formei na rua.”
João nos chamou a atenção. De todos, era o que tinha a fisionomia mais triste. Ele é de Sobral, no Ceará, e mora na rua há seis anos. A droga foi o motivo: “Minha mãe me colocou para fora quando vendi tudo que tinha dentro de casa.” Após duas internações, resolveu ir para o Rio de Janeiro e Salvador, mas só se firmou em Juiz de Fora.
Pai de dois filhos, João gosta de morar na rua. “Não fui feito para ficar em casa. Minha mãe já me visitou quando estava no Rio e tentou me ajudar. Não quero ajuda, sou homem de rua.”
A cada despedida de um personagem dessa história, uma estranha felicidade tomava conta da equipe. A sensação é de que o ser humano se adapta a qualquer situação. Somos todos sobreviventes.
O Uma Pá preparou um ensaio fotográfico do casal Antônio e Queridinha, juntos há dois anos. Eles habitam a Rua Delfim Moreira, no Granbery, e zelam pelo espaço que os acolhe. "A gente cuida da rua".
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