top of page

O outro lado da espátula

  • Danilo Pereira
  • 3 de mai. de 2016
  • 3 min de leitura

Um tremular de queixo e seis pernas enfiadas em calças jeans insistem em tentar aquecer os corpos que sustentam. O caminhar é ligeiro nas ruas frias do centro da cidade. Os três repórteres parecem não se importar com o estalar de articulações nos bolsos provocados pelos dedos que se escondem do ar gelado de poucos dias. Outro som é o do estômago, que aparenta roncar e pedir por um lanche em qualquer esquina pouco iluminada naquela noite de sábado (30). Eis que Tião, com seus 62 anos, dos quais 20 ele esteve sempre trabalhando no mesmo lugar, atiça ainda mais o apetite e a fome daquele que pergunta sobre o seu ofício. Um sorriso furtivo e uma mão no boné que esquenta a cabeça com já grisalhos cabelos revelam a figura simpática daquele senhor que diz não encontrar dificuldades no trabalho. O acaso que levou Tião até aquele ponto da Avenida Rio Branco é o mesmo que o fez se deparar com violentos acidentes de trânsito e com a boa receptividade inesperada de seus clientes. “O que mais me engrandece aqui são as grandes amizades que eu consegui...”, diz Tião no momento em que o cheiro de seu molho de cachorro-quente finalmente corta o gelo das 20 horas e é percebido pelo olfato do seu freguês em potencial. Porém, apenas um aperto de mão fecha a conversa, e as seis pernas partem da esquina da Espirito Santo com a Rio Branco, deixando para trás aquele simples senhor que acena em despedida.

O vento frio no Calçadão da Rua Halfeld é um convite à aproximação dos corpos. Vemos pessoas divididas em duplas enquanto mastigam hot dogs, espremidas, em banquinhos de plástico. Miro se apresenta como dono da barraca, parecendo tomar a liderança do negócio na frente de seu parceiro. Ele despeja a farta batata palha no pão da moça que acaba de chegar. Notável é a certeza na voz de Miro quando o mesmo tenta esclarecer o prejuízo proporcionado pelo gelo daqueles dias, que torna sazonal o seu sustento, já que mantem seus clientes potenciais recolhidos em seus lares. Porém, seria mais fácil poder enxergar a falta de compradores que os ventos cortantes proporcionam se pelo menos um dos banquinhos não estivesse ocupado por um freguês sedento por cachorro quente. Já foi agricultor, mas agora Miro não se vê em outro lugar senão próximo aos taxistas da Batista de Oliveira esquina com Halfeld, servindo aquilo que para muitos é a única refeição em muitas horas.

A saciedade também é encontrada no x-bacon da esquina da Marechal com Getúlio Vargas, quando Rafael deposita cubos grossos de bacon no pão aquecido. Não há só bife e óleo na chapa, mas também um queijo escorrido que é manipulado pela espátula rápida e habilidosa de quem há 10 anos repete suas fórmulas. Ele se apresenta como José Rafael de Souza, mas prefere ser chamado apenas de Rafael. O lamento do artista da espátula vai para todos os assaltos que já presenciou nos anos em que dirigiu o negócio. Revela isso enquanto entrega sorridente o “sanduíche-jantar” do rapaz faminto. Pouca coisa mudou no seu ambiente de trabalho em todo este tempo de profissão. O que mudou de fato são as pessoas que o visitam e degustam a sua obra.Na Rua Floriano Peixoto o prêmio de simpatia master talvez vá um dia para Willian Alves, já que esta qualidade parece um acréscimo de seu espetinho. Quando perguntado sobre o tipo de clientes que atende, um braço calejado se ergue: é Luís Cláudio, que se apresenta fiel ao espeto napolitano da vez. O mesmo braço não pôde se manter no ar por muito tempo, pois precisava dar conta do pedaço de linguiça que quase escorregava pela culatra. Adolescentes, confidentes e bêbados capazes de saírem nus pela extensa rua do centro pedindo churrasco, são alguns dos espécimes capazes de serem encontrados e atendidos por Willian. Ele diz que ri com tudo o que vê. Talvez o maior tempero de sua profissão é nunca estar sozinho e ter consigo várias histórias boas para contar.

Comments


POSTS RECENTES:
PROCURE POR TAGS:

© 2015 por Uma Pá de Histórias, Criado com Wix.com

bottom of page