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Segredos de liquidificador

  • Carime Elmor
  • 10 de mai. de 2016
  • 4 min de leitura

Subo as escadas correndo, o piso é de ardósia, escorregadio, pouca luz. Passo por uma sala com uma vitrola e a agulha está fincada em um disco da década de 70, mas também não é ali. Até que ele abre uma cortina branca, atrás aparece uma porta de vidro que dá para um terraço. Está frio, mas eu nem ligo, só quero ver logo o... lágrimas caíram no meu rosto.

Tudo escuro, uma mesinha preta baixinha no chão com duas almofadas por perto. Flor, vinho, cartão; ai, como eu amo as palavras! Mas todo o afeto está, na verdade, no tempo de preparo daquele jantar, nas horas gastas no supermercado fazendo compras, na tentativa de fazer os cogumelos mais perfeitos possíveis, e também na ideia de me surpreender, cozinhando pela primeira vez aquela entrada da noite.

E o segredo, esse fica entre a gente. Se perde com o tempo, mas pode ser resgatado com a lembrança do barulho das duas taças se encontrando no brinde que deu início a tudo, com o gosto do vinho complementando todo aquele cheiro e sabor de comida que acabou de ser preparada. Os dois olhos azuis estão voltados para mim, quer descobrir logo na primeira reação o que eu senti quando experimentei pela primeira vez.

“Passei anos escondendo o fato de amar cozinha, por ser algo imposto como menos masculino ou qualquer bobagem que uma criança insegura acredita. Até perceber que os homens da minha vida adoravam criar suas obras primas no fogão. E realmente é assim que eu encaro cada prato: uma obra prima (...). Procurar um paladar que se encaixe perfeitamente com minhas expectativas, minhas emoções, é algo extremamente gratificante (...). E a audição, existe algo de extremamente sensual com o som de um azeite quente dourando cebolas, alhos, peixes, carnes e as mais gordas fatias de bacon. Mas nada se compara ao som de sua obra de arte ser vorazmente devorada, de talheres raspando o fundo do prato, e de sorrisos e felicidade preenchendo o ambiente, enquanto meu coração se enche do mais forte orgulho e da mais forte tranquilidade”, falou o chef da noite.

O pote de rolhas e a latinha cheia de cores das tampinhas da cerveja são a única forma de contar quantos foram os jantares. Os potinhos estão transbordando. Algumas cortiças têm rabiscos de datas, outras alguns escritos proibidos; segredos de liquidificador. Mas talvez o maior segredo deles é o de colocar aquele álbum que você acabou de descobrir e não para de ouvir, para tocar, repetidas vezes, sem ninguém para se importar. Enquanto cozinha um risoto naquela noite que elegeu a solidão para ser sua companhia. Abre uma garrafa de vinho tinto e toma até secar, sentada onde bem quer, de pijama, sem roupa ou da forma que preferir para escutar sua própria voz sussurrando bobagens, delicadezas e coisas non-sense na sua própria cabeça.

Ela senta ao lado dela, que a chama de amor. A primeira vez que cozinhei pra ela... a primeira vez que ela foi lá em casa e eu comprei a batata preferida dela... nossa primeira receita juntas foi um pudim, ela estava com muita vontade e aí resolvemos fazer. Várias memórias vêm surgindo em torno do cheiro e gosto das comidas que preparam enquanto estão juntas, em casa, nesse recanto libertador, em que o principal motivo é o de ficarem uma com a companhia da outra, e o segundo é a vontade de cozinhar e de comer, comer, comer.

_ Macarrão com molho branco no forno, cheio de coisas, foi a primeira comida que fiz pra ela.

_ Eu não sei cozinhar, mas já fiz panqueca de café da manha surpresa.

A mesa posta e a ornamentação do prato ficam até esquecidas, querem logo atacar o que há de bom. Já tentaram a ideia de acender velas, mas com o receio do desastre de colocar fogo na casa, preferiram um abajour: essa luz aconchegante que já deixa o ambiente perfeito. A cozinha é o ambiente em que enquanto uma pensa nos pratos, prepara a refeição, a outra ajuda, pica alguma coisa, bate os ovos. Tudo isso com uma música ao fundo da banda preferida de uma delas. Ali podem ser exatamente quem são, podem fazer bagunça e encher a louça de pia, podem ficar até apenas de calcinha e sutiã cozinhando e se amando.

Por ser vegetariana, sua namorada aprendeu a cozinhar falafel, strogonoff de grão de bico e está mudando seus hábitos alimentares. E quando vai ao mercado só fica pensando no que poderia comprar para agradar. “Fico agora pesquisando mais receitas, o que pode ficar melhor com isso e aquilo. Eu fico pensando: ai, gente, será que ela vai gostar?, Será que vai ficar ruim?, Será que esse prato ficou melhor que o outro? Será que essa receita nova ela vai gostar também? Eu fico muito ansiosa.”

E aquele jantar que além de ser preparado por alguém querido, ainda é em um cenário perfeito? Um outro casal estava separado entre São Paulo e Portugal, até que se encontraram em Lisboa e na volta para uma cidade interiorana do país foram conversando no caminho do ônibus. Era a primeira vez que se encontraram na vida, depois de muitas horas se conhecendo por redes sociais. Primeiro prato: salmão, compras juntas no mercado, jantar de despedida, afeto e aproximação, e ao fim, lágrimas: só se veriam novamente quase 50 dias depois. “Quando dormimos juntas, ela levanta mais cedo, prepara um café da manhã e leva de surpresa na cama. Cada detalhe é pensado: faz chá, já que eu amo e corta o bolo em fatias”.

Ao som de Björk, Tulipa Ruiz, Maglore, Céu, todas as vezes que estão juntas, ela cozinha algo gostoso, abre uma garrafa de vinho, ou uma cerveja diferente e aproveitam todas as sensações de como um jantar a dois, a duas ou sozinha fazem a gente sentir.

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