O sabor da lembrança
- Priscila Gonçalves
- 17 de mai. de 2016
- 4 min de leitura
Tenho diante de mim a figura de alguém importante. Ao lembrar-se de seu momento especial, vejo seu rosto se modificar em expressões de saudade. Os olhos ganham vida, um sorriso lhe escapa dos lábios e permanece neles enquanto sua lembrança é contada. Um bolinho de chuva é só um bolinho de chuva, meus amigos. Mas nada se compara a um bolinho de chuva feito pelas mãos de quem se ama. Olhando pela janela, grossas gotas de chuva varrem o ar: nesses dias a família se junta para comer os bolinhos e tomar café com leite.
O tempo é frio, mas a cozinha é aquecida pelo fogão de lenha, pelo café quentinho, pelos familiares que vão se achegando. Gosto de adolescência, de família reunida, de simplicidade e amor de mãe. A comida é capaz de nos transportar para momentos inesquecíveis. O bolinho, anos depois, tem o poder de fazer voltar o tempo na mesma cena da lembrança, onde é possível escutar o estalar da lenha no fogo e o amor é capaz de aquecer a casa toda. Sensações do passado que se fazem presentes.
A comida é parte da lembrança, assim como os momentos vividos. No entanto, o segredo da saudade são as pessoas, os afetos construídos, o que foi preparado por alguém. O amor tem muitas formas. Muitas maneiras de se fazer presente e ser demonstrado.
Regina tem 20 anos, é estudante e atriz. A avó já falecida se faz constantemente presente em suas lembranças. Parte das memórias referem-se à torta de limão que fazia. A iguaria ganha outros (e os outros) sentidos quando o amor é o tempero principal. A avó, alta, forte e de presença marcante, é lembrada pela neta como “uma mulher do mundo, que tinha em si as paixões da vida e um inerente amor pela cozinha”. Aos oito anos, Regina conheceu um sabor que nunca mais se esqueceu. Certo dia, a figura pequena observava, atenta, a avó retirar algumas forminhas enferrujadas de um armarinho de madeira, pintado de azul. Curiosa, perguntou o que era. A senhora de cabelos grisalhos, olhos pequenos e sorridentes, respondeu: “È a forminha para o doce mais gostoso do mundo: tortinha de limão”. A junção da massa crocante com o azedinho do limão se tornou, a partir dali, seu maior desejo. Tinha gosto de carinho, de vida, de afeto. “Comia quantas conseguia até ficar com dor de barriga. E ela deixava, ela sabia que era inevitável! Como eu amo aquela torta, aquela mulher!”
Os sabores da comida se misturam ao sabor da saudade. “Quando minha avó veio a falecer, a saudade ficou. Saudade de tudo, saudade dos seus azedinhos. Mas como ela sempre esteve viva em nós, minha mãe decidiu fazer as tortinhas, num domingo, cor de domingo... Cor de baunilha! Foi só uma vez que comemos as tortinhas sem ela e era como se saboreássemos amor!”.
O sabor característico da torta de dona Vanda nunca será encontrado em nenhuma padaria ou aprimorado por quaisquer outras mãos. Privilégio de poucos.
Gabriela também tem suas recordações de avô e avó. É artista plástica, tem duas filhas e dentre as irmãs e irmãos é a filha mais velha. Amava estar na presença da avó: com ela aprendeu a fazer tricô e costurar. Lembra de dona Francisca como uma mulher brava. Com ela não tinha essa de “deitar no colo para que ela fizesse carinho e dizer que a amava”, conta a neta. Mas o amor nem sempre demonstrado com gestos, sempre se apresentava de outras formas. O chá com torradas feito por ela era visto e sentido como uma demonstração de carinho e se tornou um dos momentos inesquecíveis para Gabriela, principalmente por ter esse significado. “O cheiro da torrada com manteiga e o chá me fazem lembrar desse momento e me emocionam, porque eu me sinto privilegiada de ter vivido isso”.

Gabriela com a avó e familiares. “ Uma maneira dela me fazer carinho, era fazendo esse chá com torradas, e eu gostava muito desse momento, acho que por causa disso, porque eu sentia essa demonstração de amor dela”. Acervo pessoal
Dona Francisca hoje sofre do mal de Alzheimer. Ela não anda e nem fala como antes. Entretanto, a neta, que sempre se emociona ao visitar a avó, tem viva em sua memória a mulher forte e guerreira que há anos preparava seu chá com torradas. “Ela foi tanto pra mim ...”, fala emocionada. Amor é assim mesmo e, às vezes, é tanto que transborda pelos olhos, pelo sorriso frouxo e pelo brilho do olhar.
Gabriela, ou simplesmente Gabi, também tem a figura do avô viva em seus pensamentos. José Manuel era caminhoneiro, profissão passada de pai para filho. O bisavô de Gabriela também percorria as estradas. Foi, em particular, alguém muito importante em sua vida. Sua lembrança do café com leite feito por ele nunca foi esquecida. Era doce, muito doce. Com o café já frio, vô Nequinha, como costumava ser chamado, esquentava o leite com açúcar, para deixá-lo mais doce e quentinho, e passava manteiga em um pão do dia seguinte. “Manteiga Doriana, porque tem um gostinho diferente”, afirma a neta. Uma combinação de sabores que ainda dá saudade. “Eu gosto às vezes de fazer isso: esquentar o leite pra tomar com café pra lembrar o gostinho, lembrar dele, porque ele é muito presente na minha vida até hoje”.
Nequinha se foi quando Gabriela tinha 12 anos. A neta se emociona ao falar do avô. O homem que carregava no corpo muitas marcas de seu oficio sabia ensinar, pacientemente, tudo sobre os caminhões. Buscava a neta na escola, quando a mãe acabava se esquecendo, a levava para viajar, encapava seus cadernos e, por ter alguns imóveis, ensinava os segredos das construções. Esses momentos eram regados a muitas “histórias de caminhão”, misturadas ao gostinho do café com leite. Gestos que ensinaram Gabriela a ser quem é hoje, ajudando a construir sua personalidade e a forma de encarar a vida. Resquícios de um amor que leva para o seu trabalho e para sua arte.
É interessante perceber a diferença entre o tempo que passamos com alguém especial e o tempo que simplesmente passa. De todas as lembranças, fica a simplicidade e o amor em comum, a gratidão e a saudade. O sabor da lembrança que se renova todos os dias.
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